
Natural da Beira, Moçambique, o galardoado escritor Mia Couto é considerado um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos de língua portuguesa. A escrita tem sido uma paixão constante, desde a poesia, na qual se estreou em 1983, com A Raiz de Orvalho, até à escrita jornalística e à prosa de ficção. Vencedor de vários prémios, tem a sua obra traduzida em alemão, castelhano, francês, inglês, italiano, neerlandês, norueguês e sueco.
A carta:
Senhor Presidente:
Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa
lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos
tínhamos feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos
constituir ? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada
contra nós: era a fome e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome
fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa
simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do "apartheid"
- violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas
fomos vítimas da agressão desse regime. Mas o regime do "apartheid"
mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado
"envolvimento positivo". O ANC esteve também na lista negra como
uma "organização terrorista!". Estranho critério que levaria a que, anos
mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de
"freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin
Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os
americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim,
um país que não conseguia dormir. Porque vivia sobressaltado por
terríveis factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência.
Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia
que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu
armamento de destruição massiva. Por razão desses terríveis perigos
eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados
para o vosso país. Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o
vosso país me inspiravam? Não eram produtos de sonho, infelizmente.
Eram factos que alimentavam a minha desconfiança. A lista é tão
grande que escolherei apenas alguns:
- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou
bombas atómicas sobre outras nações;
- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da
força" pelo Tribunal Internacional de Justiça;
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos
mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de
derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto
praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o
gaseamento dos curdos em 1998);
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba
foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e
baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídico;
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos
agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à
espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o
maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu
nenhum reparo dos EUA até que ele deixou de ser conveniente, em 1992;
Continua aqui:
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